Alguns anos se passaram até que eu tivesse outro contato com algum Cigano. Durante esses anos, ouvindo comentários aqui e ali, fui criando uma ideia sobre eles. Aos 12 anos meus pais finalmente conseguiram comprar uma casa, num bairro perto de onde morávamos, e por coincidência, na mesma rua morava uma família de Ciganos. Como nos éramos muito reservados, demorou até termos algum tipo de contato com eles. Mas mesmo sem saber quem ou o que eram, todas as vezes que eu passava por lá, me chamava a atenção aquela casa porque na frente havia muitas coisas antigas amontoadas na varanda. Até que um dia eu vi as pessoas da casa, mulheres com roupas coloridas e saias longas, cabelos longos e me perguntei se seriam Ciganos, porque se pareciam muito com a encantadora mulher que estava em meus pensamentos anos atrás. Quando voltei para casa, nada falei com minha mãe e assim, o tempo passou. Até que um dia, minha mãe muito irritada, andava de um lado pra outro, da cozinha pra copa, resmungando sobre meu pai. Eu sabia que ele estava no portão falando com alguém e quietinha eu fui atrás espiar com quem ele estava falando. E vi um homem bem moreno de meia estatura, cabelos grisalhos compridos até os ombros, chapéu preto... Meus olhos arregalados olhando fixamente pra aquele homem velho, mas tão diferente. Suas roupas já surradas; calças, blusão e tinha um colete aberto que mostrava alguns cordões, e tinha também um anel. Nem sabia que homem usava anel. Ele estava falando com meu pai, mas nem prestei atenção o que. Só lembro do meu pai me mandando entrar. Obediente, entrei e não demorou muito, meu pai também entrou e foi aí que começou a discussão com minha mãe. Fiquei no meu quarto, mas dava pra ouvir claramente a voz feminina grosseiramente em tom de desagrado, falava - "você está maluco, querendo fazer negócio com essa gente? Esse povo é todo enrolão e trapaceiro". Não se ouvia a voz de meu pai, só dela falando sem parar. Minhã mãe sempre dizia que meu pai parecia "Cigano", porque vivia atrás comprando, trocando e vendendo as coisas. Carros, passarinhos, objetos de ouro e prata, ferramentas, tudo que ele achasse que ia dar algum lucro ele negociava. Não conseguia ficar com as coisas muito tempo e muitas vezes, numa simples conversa de bar, acabava em negociação. Ela dizia "daqui a pouco você vai trocar a gente também por alguma bugiganga que não serve pra nada". Eu ficava rindo por dentro, porque achava tudo muito engraçado. Nessa época meu pai tinha um viveiro de pássaros; canários, sabias, melros, galo campina, e outras espécies e também os incluía na lista de barganhas que arranjava por aí.
Sempre que eu podia passar em frente a casa dos Ciganos, eu passava bem devagar só para ficar olhando, vendo se via alguém. Havia algumas mulheres lá e crianças; tinham 2 pelo menos e um rapaz. Tinha muita vontade de entrar lá, conversar com eles, saber como eram, mas com o passar do tempo, acabei ficando com um misto de medo e atração. Medo por todos os comentários que eu ouvia de minha mãe, e atração não sabia porquê. Minha admiração e curiosidade sobre aquela gente, estava sendo minada pela minha mãe que falava horrores, comentários sempre cheios de desprezo, desaprovação e negatividade. Sempre os relacionando a falta de honestidade, ladrões, mentirosos, enganadores, sujos, entre outras coisas. E acabei criando um arquétipo pautado no preconceito e discriminação.
Fui crescendo e quando "mocinha" haviam muitas Ciganas no centro da cidade onde morava. Elas ficavam concentrada num beco e as vezes espalhadas em pontos da centro comercial. Sempre chamando as pessoas, geralmente mulheres para ler cartas, ou somente conversar. Apesar de não tirar os olhos delas ao passar, eu procurava desviar bem o caminho, pois sentia-me desconfortável quando elas me chamavam pra ler minha mãe ou com um baralho já envelhecido e desbotados nas mãos. E pre-conceito me embutido falava mais alto que minha vontade de estar com aquela gente. Eu sempre passava longe, mas nunca consegui deixar de esticar o olho para admirar suas roupas diferentes de cores vivas e toda aquela atmosfera de "coisas antigas", que talvez me desperta-se inconscientemente a coisas antepassadas, ao passado, ao antigo de mim.
Até que um dia anos mais a frente, andando pelo mesmo centro comercial onde elas ficavam aos montes, já não se via mais com facilidade aquelas mulheres. Mas ao caminhar distraída, fui surpreendida por uma mulher de meia idade, me falava que eu estava dividida entre dois amores. Aquilo ligou meu automático na situação em que eu me encontrava. De fato, estava na dúvida entre dois namoradinhos. Parei minha caminhada e sorri, sem jeito, quando ela se aproximou mais, e me vi frente a frente com uma Cigana. Comecei a prestar atenção em seus traços, seus cabelos loiros compridos, rosto, e enquanto ela falava, percebi que já tinha visto aquela senhora, era a mesma mulher linda da casa grande e luxuosa que eu via em minha infância. Fiquei a me questionar, mas afinal por que ela estaria ali pela rua, tentando arrumar um dinheiro em troca de adivinhações. Ela morava bem, possivelmente tinha dinheiro e não precisava aquilo. Enquanto eu me perguntava, a voz de minha mãe vinha a minha cabeça sobre as mulheres Ciganas que ficavam pelas ruas; trapaceiras, enganadoras e mentirosas. Que inventavam as coisas para as pessoas, se diziam videntes, para enganar as mulheres idiotas que acreditavam naquelas bobagens que elas diziam. Bom, mas se elas não tinha o poder da vidência, como ela acertou sobre minha condição amorosa? E pra responder minhas perguntas, fixei minha atenção no que ela me falava, e bastou uma afirmação que não condizia com a realidade, para que eu desse crédito a minha mãe. Quando ela me pediu alguma quantia em dinheiro, o que eu pudesse dar, dei mais crédito ainda a tudo o que minha mãe sempre falava sobre Ciganos. E mais uma vez voltei a me fechar com medo de ser enganada, de estar fazendo papel de trouxa, de que todos a minha volta, estavam pensando aquilo sobre mim, e fui ficando incomodada de estar ali, ao mesmo tempo que queria estar. Não queria saber sobre mim, mas sobre ela, como vivia, quem era, no que acreditava. Todavia, me retrai, disse que estava com pressa e não tinha dinheiro e sai o mais rápido possível da frente dela.
Hoje, muitas águas rolaram por debaixo da ponte, muitas estradas percorri e caminhei. Aprendi a ver o mundo e as pessoas através de meus próprios olhos e sentimentos. E apesar de ter sido criada com ideias preconceituosas não somente contra Ciganos, mas contra os muito pobres, contra mulheres que não se enquadravam dentro dos padrões morais estabelecidos por minha família, por homens divorciados que não prestavam e com toda certeza os maiores alvos eram negros e homossexuais. Cresci no meio de todo tipo de julgamentos que mentes ignorantes, desprovidas de consciência social e humana poderia educar um filho. Vivendo cercada de piadas e comentários difamatórios, jocosos, e humilhantes contra vários grupos étnicos e sociais, sim, deixei que partes de mim fossem contaminadas por tais referencias. Mas lembro-me que sempre ouvia tudo e guardava pra mim, sem indaga-los sobre o porquê de tais afirmações. Um dia porém, minha mãe foi me buscar na escola. Estava saindo com minha melhor amiga, correndo, toda empolgada para perguntar se eu podia leva-la para ir fazer um trabalho escolar comigo. Minha mãe deu uma desculpa de que íamos sair, ela sorriu pra menina perguntando onde ela morava, e entramos no carro. Logo em seguida ela virou pra mim e me disse "Quem é essa preta que você quer levar pra casa?'- respondi que era minha melhor amiga e ela somente falou: " amiga preta?". Como sempre, fiquei quieta, mas não em meus pensamentos. Por que ela não podia ser minha amiga ? Somente porque era negra? Não era certo. Ela estava errada e senti raiva por isso. Depois que a raiva passou, veio a inconformidade de não aceitar essas posturas. Continuei a ser amiga dela e de todos as crianças brancas ou negras por quais tive afinidades e sentimentos. Nunca a confrontei com nenhum tipo de comentário do tipo, nem muito menos meu pai com suas brincadeiras jocosas e piadas de mau gosto. Mas dentro de mim, nunca aceitei sequer a cogitar achar por um segundo que eles estavam certos. Mas por que me deixei ser levada contra os Ciganos? Simplesmente porque apenas conheci um lado. Não tive contatos com Ciganos. O mistério e condição de segregação entre os Ciganos e o resto dos não-ciganos, contribuíram para que eu apenas os conhecesse através de minha família e seus comentários preconceituosos e ofensivos. Além disso, havia os filmes, a mídia; onde havia Ciganos no meio, era sempre associado a ladrões, assassinos, velhacos, feiticeiros macabros e rogadores de pragas.
A medida que o tempo passava, ficava cada vez mais raro ver Ciganos em minha cidade e com isso, acabei guardando-os dentro de minhas lembranças de infância. Até que a vida me conduziu a caminhos mediúnicos e comunicação com entidades espirituais. Passei por sérios problemas de afloramento mediúnico e mais tarde por ocasiões de problema no casamento, um amigo me disse que havia um "Cigano" que consultava e fazia revelações através de cartas e que podia me ajudar. Quando eu cheguei na casa onde este Cigano atendia, havia várias e vários pessoas esperando pra consulta com a entidade. Vi jovens vestidas com roupas que lembravam o Oriente. Todo o tempo que estive ali esperando pra falar com a tal entidade Cigana, me senti estranha, com sensações físicas pelo meu corpo. O cheiro de incenso era forte, porém agradável. Mas aquelas sensações estavam me incomodando, até que fui chamada para entrar numa sala e esperar. A decoração remetia a Ciganos espanhóis, num misto com referencias orientais do hinduísmo. E quando eu fui chamada para entrar na sala, meu peito ficou gelado. Meus olhos percorriam tudo e fixaram na entidade. Era um homem sentado, trajado de árabe, com turbantes pomposo e roupas brilhantes luxuosas ao estilo árabe, mas quando começou a falar tinha sotaque espanhol. Completamente diferente de minhas referencias Ciganos. Não questionei nada naquele momento. Apenas sentia. Sai de lá maravilhada com a entidade, por ela além de ter me dado conselhos prudentes e de bom senso, falou muito sobre minha vida de fatos que ele não teria como saber. Não tive qualquer tipo de dúvida de que ali realmente havia algum poder sobrenatural, embora não sabia exatamente o que. Apesar de minhas educação católica e crença espírita, não entendia o mundo "das entidades espirituais" e tudo era muito novo pra mim. E a partir dali, voltei várias vezes na Cigana, fiz trabalhos para ajudar-me em meus problemas pessoais e com isso, acabei de interessando por buscar respostas as minhas indagações referentes aos mecanismos que podiam envolver esses espíritos que se manifestavam sob identidades raciais e sociais, no caso, como Ciganos. E muitas indagações pairaram em minha mente e iniciei minha busca. Primeiro: o que os árabes tinha a ver com os ciganos, por que o falar de um árabe com portunhol (português com sotaque espanhol), espíritos tinham pátria? Esses espíritos eram de fato Ciganos que viveram aqui? Como minha base doutrinária era espírita, não entendia esse universo de entidades sob determinada identidade grupal e não individual.
E foi justamente essas perguntas que me levaram de volta ao povo Cigano de certa forma. Acabei entrando para a Tenda de Trabalhos espirituais que tinha aquela entidade Cigana como mentor. E fui tendo muitas respostas sobre os espíritos Ciganos de uma forma espiritual e mediúnica. Mas e o povo Cigano? Onde se encaixa em tudo isso? No tocante a minha relação com a etnia Cigana e a construção deveras negativa que tive em minha vida, a relação com os espíritos ciganos, serviu-se como uma ponte de ligação para buscar um conhecimento histórico, cultural e filosófico sobre este povo. E cada vez mais foi-se aderindo em minha respeito, admiração e amor por um povo que indiscutivelmente está na história da construção de nosso povo, assim como os negros africanos e grupos indígenas; os nativos de nossa terra. E o que me foi passado com tanto preconceito, desprezo, medo e segregação, o que acabou sendo minha única fonte de contato e saber acerca desse povo, acabei de certa forma, vendo o outro lado da história de ódio e discriminação. Tanto por parte dos espíritos ciganos que caminham hoje comigo, como através da busca do conhecimento histórico, cultural e espiritual desse povo aqui no nosso país e pelo mundo a fora.
Mas senão fosse meu lado espiritual, talvez jamais fosse buscar desmistificar e rever o que me foi passado sobre o povo Cigano. E eu viveria, assim como milhares de pessoas, na generalização do que a mídia, a televisão de um modo geral nos passa e com a educação que recebemos de família e sociedade sobre estes. Porém não tenho o olhar pessimista para o meio que nos cerca e acredito que muita coisa mudou, mas a passos curtos. Muito ainda há de ignorância, pre-conceito e ideias completamente distorcidas sobre o que de fato cada um é. Quem sabe nos acostumamos com os pensamentos arcaicos e irracional para o que nossa realidade de hoje pede, que se não buscarmos um revisão íntima do que somos e em que acreditamos, como vemos o mundo a nossa volta e como interagimos com ele, se não houver um despertar interno para o outro, jamais iremos nos livrar do ranço egoísta que cada vez mais nos faz egocêntricos e preconceituosos e discriminalistas, pois somente damos espaço para os que dentro de meus padrões morais, raciais e sociais se enquadra. Mas o mundo é bem maior do que o nosso próprio umbigo e quintal. Através de esforço de muitos, muita coisa tem mudado e cada vez mais pessoas então buscando princípios mais humanitários e coletivos dentro de si, buscando promover um despertar íntimo para posturas mais dignas e elevados, como o respeito as diferenças seja ela quais forem, a preservação dos recursos naturais de nosso próprio planeta, a reformar a educação de nossos filhos e ai sim, estamos começando a plantar as sementes "da nova era". É dentro do seio de cada núcleo familiar que o futuro coletivo acontece. A educação de nossos filhos, de nossas crianças, é fator primordial para a renovação do pensamento e comportamento humano social. A educação que tive, é inaceitável nos dias de hoje. E cada vez mais, devemos garantir que nossos filhos cresçam livre de estereotipagem, preconceitos, discriminações, violência, agressividade, egoísmos. Valores sublimes como a igualdade, e respeito, o semear as boas sementes da amizade, da fraternidade, solidariedade, o bem coletivo e o amor incondicional é a regra de ouro para a educação de nossos meninos e meninas que darão amanhã, a continuidade do que somos hoje e serão os frutos maduro, de onde tirarão as sementes para semear aos nossos netos.
Quanto a mim, tive que tirar muitas sementes e raízes daninhas, no meio de outras dadivosas, para poder hoje
semear boas sementes aos meus filhos, pois, o que eles serão amanhã, depende de mim também.